quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Quem Conta Um Conto | Ainda ser mulher por Paulo Rodrigues Ferreira

Ainda ser mulher

por Paulo Rodrigues Ferreira*


Ema não podia mais. Entrou na casa que resistira aos mais traumáticos acontecimentos da sua existência: a morte da mãe, a progressiva degradação mental do pai, o seu casamento falhado e o nascimento e o suicídio do filho. Segundo o psiquiatra, tipo enervante, os comprimidos ajudavam a respirar embora não curassem, a depressão não desaparecia apenas com químicos. Para além dos seis comprimidos diários, o paciente deveria fazer um esforço para se salvar. Um rivotril de dois miligramas apagava uma noite de ansiedade mas não tinha qualquer efeito benéfico a longo prazo. Mais importante do que a medicação era a atitude do paciente: para sobreviver este era obrigado a encarar as suas fantasias, a perceber que a sua forma de pensar, tóxica, constituía a raiz do problema. O trabalho do paciente consistia em substituir pensamentos negativos por outros que correspondessem à realidade. Repugnava a Ema a hipótese de voltar às consultas semanais, à partilha da sua intimidade com outros pacientes. Não sou a melhor nem a pior, não sou a mais bonita nem a mais feia, sou uma mulher cheia de virtudes e de defeitos que aceita ser quem é. Bastava daquilo, quase dois anos de terapia e poucas mudanças. Aceitar as suas virtudes e defeitos, balelas. Despejou os comprimidos na sanita. Passadas as náuseas e restantes efeitos causados pela privação (duas semanas), sentiu-se orgulhosa, revigorada até, tantos meses depois respirava e sorria, alimentava-se, via televisão, ia ao cinema, e até se esquecia de nomes que a tinham acompanhado ao longo de todo aquele tempo, como zarelix, olanzapina, triticum, etc. A depressão permanecia viva. A tristeza que ressurgia ao domingo ou em certas alturas fastidiosas voltou a dominá-la. A ansiedade apoderou-se de quase todos os seus actos. Ema não suportava aquela casa e abandonou-a. Apanhou um comboio com o intuito de desaparecer. Abriu um romance maçudo que trazia na mala e enrugou a testa, tentando concentrar-se. Uma viagem longa para o paraíso, pensou, uma longa jornada de silêncio, uma terapia diferente. Sentado à sua frente estava um homem de fato e gravata que não despregava os olhos das suas pernas cruzadas, que uns collants pretos e uma saia curta não cobriam. Longe iam os tempos em que trocava olhares e depois saliva e depois outros fluidos em comboios com desconhecidos. Perdera o desejo. Um pénis era só carne. Não voltaria a permitir que a carne de um desconhecido entrasse dentro de si por causa de um diálogo cliché ou de uma cara bonita que lhe sorrisse. Lia o livro com desinteresse, pensava no dia seguinte, nos meses seguintes. O futuro surgia-lhe como uma tempestade em alto mar. Estava sozinha. Não contava com o pai esquizofrénico, internado no manicómio. Um pai que ouvia extraterrestres e desenhava sombras no papel e anunciava uma guerra interplanetária. Um pai que levara choques eléctricos, injecções e quilos de comprimidos para não se assustar com a invasão dos extraterrestres. A tua herança será uma casa em Saturno, prometera-lhe o louco numa visita. Uma mansão em Saturno pejada de móveis luxuosos e munida de uma televisão do tamanho de uma parede que transmitisse todos os canais da galáxia. O pai era vento. Não contava com a mãe morta. Os mortos não contam, não ouvem. Não chegara a visitar a mãe no cemitério. Também não esperava auxílio divino. Acreditava na fuga. Acreditava que um dia conseguiria estar onde não estava, ser quem não era. O comboio chegou à última estação. Ema foi das últimas passageiras a sair. Entrou num hotel acompanhada pelo homem que no comboio não conseguira parar de olhar para as suas pernas. Entrou no quarto, despiu-se, tomou banhou e deitou-se. O homem deitou-se a seu lado. Ema não tinha vontade de fornicar, a palavra fornicar incomodava-a tanto quanto o toque do pénis erecto do homem na sua anca. Ainda sou uma mulher, afirmou, ainda sou uma mulher, e quando se virou para espetar uma tesoura no peito do homem assustou-se ao ver a cara do pai, e quando espetou a tesoura espantou-se por não ter conseguido acertar no homem, por só haver colchão, por ser tudo uma fantasia, e então espetou a tesoura em si própria.


*Autor do livro Sonhos de Lobo, escreve com frequência para o blog Enfermaria 6

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