segunda-feira, 2 de março de 2015

O Pardal e o Velho por RN (conto) Livros de Ontem



De todos os bancos que por ali havia, foi no meu que veio pousar. Pensei que se iria desiludir quando percebesse que aquilo que tinha nas mãos era um livro e não um pedaço de pão. Mas não; pareceu ainda mais interessado e aproximou-se aos poucos, em pequenos saltos e de cabeça meio de lado, espreitando ora com o olho direito, ora com o esquerdo.
 
Li as mesmas páginas dezenas de vezes. Não queria mexer-me, nem sequer para virar a folha, pois receava que isso o fizesse voar para longe. Agora que me lembro disto, devia estar numa rica figura: imóvel, a respirar muito devagar e apenas pelo nariz.
 
- Ah, estou a ver que arranjaste companhia – ao mesmo tempo, eu e o pardal olhámos a presença que nos tapava o sol: um velhote meio curvado, de boina castanha e flor amarela enfiada na lapela do colete. Ameaçou sentar-se e, para meu espanto, o passaroco nem sequer se moveu.
- Não se vai importar se me sentar aqui ao pé de si, pois não?
- Não, ora essa – disse-lhe, enquanto colocava o marcador no livro e me chegava ligeiramente para o lado.
 
Demorou algum tempo a sentar-se e, quando finalmente deixou de se remexer em busca da posição mais confortável, fez uma festa com o mindinho na cabeça do pardal.
- Não se espante, somos velhos amigos. Costumamos ficar aqui os dois à espera da Madalena, mas normalmente não se avista vivalma. Num sítio destes também não admira…
- Venho para aqui algumas vezes, é o sítio ideal para ler – tentei fazer conversa, mas confesso que nunca fui bom nestas coisas de prolongar assuntos.
- A Madalena também lê muito. Os russos, sobretudo. Deve ser isso que está a fazer, para estar a demorar tanto. O meu amigo por acaso não tem horas, não?
 
Tirei o telemóvel do bolso e espreitei o relógio. O visor gritava 15:39 em números gordos.
- São quatro menos vinte. Posso fazer-lhe uma pergunta? – estava curioso com o velhote. Olhou-me em jeito de permissão, como se me abrisse uma porta e me mandasse entrar só com gestos.
- Porque é que combinou um encontro
 aqui?
- Ora, rapaz, pelos mesmos motivos que trouxe o seu livrinho debaixo do braço e se sentou neste banco a ler. Porque embora esteja cheio de gente, este sítio é feito de pessoas caladas. Não foi por acaso que lhe chamaram “Prazeres”. É que não há melhor sítio para aproveitar os prazeres da vida: o silêncio, a calma, a sombra das árvores e a companhia de quem está presente e, ainda assim, respeita o espaço dos outros.
 
Até que enfim!, alguém que gostava tanto de cemitérios quanto eu. Sempre tive vergonha de o revelar por saber que me olhariam de lado. Convenhamos que dizer que gostamos de estar em cemitérios não é como confessar que ouvimos música pimba ou que não perdemos um episódio da telenovela da noite. As pessoas vão sempre pensar que sofremos de uma qualquer patologia e que o melhor seria levar-nos imediatamente ao Júlio de Matos. Pior que isso: passariam a ter medo de nós.
 
- E a Madalena, que não chega? Deve andar para aí às voltas, a visitar os amigos, como faz sempre porque sabe que vou estar aqui à espera. Quando começa a falar, nunca mais pára e perde completamente a noção das horas. É a única pessoa que conheço que fala com o corpo todo. Com os olhos, com o sorriso, com as mãos. Sobretudo com as mãos.
 
Percebi imediatamente que ela já lá estava, sim, mas tão calada quanto os outros. Que passaria das quatro da tarde – que anoiteceria até – e que apenas o pequeno pardal lhe faria companhia. Senti que devia ficar mais um pouco, a conversar com ele. Deve ser doloroso estar casado com alguém que está condenado ao silêncio. Pedi-lhe, então, que me contasse como se tinham conhecido.
- Engraçado que pergunte, meu rapaz. Foi há 57 anos, nos jardins de Belém. E de todos os bancos que por ali havia, foi no meu que ela pousou. 



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