quinta-feira, 2 de abril de 2015

O insuportável peso da mochila por RN - Quem Conta um Conto


O insuportável peso da mochila

por RN


«Isto não é seu?»
Mariano ouvia constantemente a mesma pergunta e dava-se por derrotado. Pegava na mochila, agradecia e seguia caminho. Já por diversas vezes fizera por se livrar daquele fardo, usando todas as artimanhas de que conseguia lembrar-se. Sempre sem sucesso.
Nas primeiras tentativas ainda argumentava. Dizia que não, nem pensar!, que deviam estar enganados porque a mochila não era dele. Nunca a tinha visto mais gasta. «Como não é sua, se acabei de o ver a pousá-la naquele banco?». Mariano aceitava-a de volta, agradecia e seguia caminho.
Enviou-a uma vez pelo correio para uma morada aleatória. Suspirou de alívio durante uma semana: parecia outro, de andar direito e sorriso nos lábios. Já não sentia qualquer peso nas costas nem tinha tendência a curvar-se. A vida era leve e corria tranquila.
Corria não; correu e não por muito tempo. A mochila voltou-lhe à caixa de correio uns dias depois – os necessários para que o serviço de correios desse conta do recado. Trazia um bilhete a acusar o engano: Caro senhor, compreendo que tenha havido um erro na entrega da correspondência. Aqui lhe envio a sua mochila, tal e qual como a recebi – vazia. Com os melhores cumprimentos, JM.
A fúria de Mariano transformou a mensagem num nevão de papel, ao mesmo tempo que gritava e pontapeava o ar. Vazia? Como assim, vazia? Então se Mariano já não podia acartar com ela, de tão pesada que estava, como podiam dizer-lhe que mais não era do que um pedaço de tecido cheio de ar?
Tinha vontade de chorar e lembrou-se de que passara muito tempo desde a última vez que o tinha feito. Perdeu-se nos cálculos e não chegou a conclusão alguma, mas sabia que a ausência de lágrimas estava relacionada com o volume de que tentava ver-se livre. Recebera a mochila há muitos anos e foi nela que passou a guardar tudo o que não lhe interessava, que o magoava, que o aborrecia. O truque veio do Avô, que lhe disse: «escondes todas essas coisas num sítio fechado, longe da vista, para que não te incomodem nunca.»
Já era quase noite quando atirou as memórias para trás das costas e, com o desespero típico das derradeiras tentativas, se pôs mais uma vez a caminho. Chegou à estação de comboios e procurou-os. Sabia que estariam na parte mais escura do edifício, com os ossos pousados em pedaços de cartão e enrolados em mantas enruçadas pelos dias. Baixou-se junto de uma velha, a mesma por quem passava todas as manhãs no percurso que fazia até ao trabalho. Nunca a tinha visto noutra postura: meio encolhida e de mão estendida, a meia haste e em forma de concha, pronta a receber qualquer coisa. Qualquer coisa que fosse.
Passou-lhe a mochila para as mãos e logo sentiu os músculos a descontrair. Ainda não se tinha levantado e a mulher já reagia:
- Está a fazer pouco de mim? – murmurou.
- Pouco de si? Não, minha senhora, por que haveria de o fazer? Vim dar-lhe isto. Aceite, por favor.
- E para que é que eu quero isto? Hum? – pela primeira vez desde que Mariano se lembrava, a velha baixou a mão e colocou-se muito direita.
- Pois então, para guardar os seus pertences. Já tem alguns anos, mas tem a minha palavra em como está quase nova! Agora até pode parecer inútil, mas vai ver que um dia ainda lhe dá jeito…
- Olhe lá bem para mim. – Mariano obedeceu – Não acha que já me bastam as minhas desgraças? Por que raio haveria de querer carregar também as suas?

Mariano reconheceu a derrota. Sem agradecer, pegou na mochila e seguiu caminho de bagagem às costas, como sempre calha a cada um de nós. 

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