quinta-feira, 2 de julho de 2015

Livros de Ontem - Quem Conta Um Conto


Parabéns, Inês

por RN


Saltei da cama mal ouvi a porta bater; liguei a televisão no noticiário e suspirei de alívio. O trânsito flui normalmente no sentido do trabalho dela. Não há acidentes, avarias ou obras que possam atrasá-la ou deixá-la de mau humor.

Não consigo deixar de ficar nervoso, embora saiba que tudo está planeado ao detalhe. Ela chega às oito e quarenta ao trabalho, mas antes de entrar toma o pequeno-almoço na pastelaria do lado. Pão de cereais com pouca manteiga, um Compal de pêra e um café curto com adoçante. Até agora tudo corre dentro do horário normal. Até parece que estou a ver aquele gesto tão dela, o de levar cuidadosamente o guardanapo aos lábios entre uma dentada no pão e um gole de sumo.

Agora é dar-lhe tempo de cumprir a rotina de todos os dias: terminar o pequeno-almoço, pagar a conta e dar finalmente entrada no edifício de escritórios. Já estou sentado à secretária, de computador pronto, à espera que ela pouse o casaco no cabide, cumprimente as colegas e ligue também ela o computador. Os meus dedos tremem ligeiramente, mas não tenho pressa.

Não é assim tão complicado preparar uma coisa destas. Claro que é preciso fazer alguma pesquisa, aprender alguns truques informáticos, nada que a internet não ensine. Depois, mais importante, é essencial estar atento aos detalhes. Esta é a parte mais fácil, pelo menos para mim. Não há prazer maior nesta vida que o de ter a possibilidade de observá-la.

São agora nove horas. Sincronizei o relógio do meu computador com o dela, para estarmos coordenados. No meu ecrã surge uma pequena mensagem a informar que o dispositivo que escolhi está agora ligado, o que significa que também ela está sentada à secretária, pronta para começar a trabalhar. Acciono o acesso remoto e ponho o vídeo a tocar.

Estamos ligados: no mesmo momento, em pontas opostas da cidade, assistimos os dois ao mesmo vídeo. A única diferença é que ela não precisou de carregar no play. Quero que entenda que, comigo, será sempre assim: nunca terá de se preocupar com nada. Cada vez mais acredito que nasci para ela, para fazê-la feliz e dar-lhe tudo o que precisa.

Durante dois minutos e vinte e sete segundos estamos tão próximos que é como se fizéssemos amor. Ela vê o mundo através de mim, sente-me na composição de imagens, música e texto que, com carinho, juntei para me expressar. Por fim, o ecrã fica negro e, em letras brancas, surge a mensagem “Parabéns, Inês”.

Missão cumprida. Saio do computador dela antes que ela tenha sequer tempo de piscar os olhos, até então pregados ao visor. A curiosidade quase me leva a ligar-me novamente. Quero saber como reagiu: se enviou algum e-mail ou mensagem de chat às amigas; o que disse, o que achou. Não posso deitar tudo a perder – não agora –, por isso acalmo-me e espero. Regressa por volta das sete e meia da tarde e nessa altura saberei.    
Sinto-me sonolento, agora que a adrenalina passou. Desligo o portátil da corrente e levo-o comigo para a cama. Preciso do conforto da presença da Inês para conseguir adormecer, por isso revejo algumas fotografias e vídeos que tenho dela. Detenho-me nas fotografias do fim-de-semana passado, as que foram tiradas do jardim. Ainda fazia calor e ela estava com o vestido branco que é seu desde que a conheço. Fica-lhe tão bem, acho que nunca lhe disse. Por que será que nunca lhe disse? Vou dizer-lho da próxima vez que o usar.

Continuo, distraidamente, para dar espaço ao cansaço. A Inês no mercado a comprar flores, a sorrir para a senhora da banca. A Inês a ler no areal, em pleno Inverno, mergulhada numa manta grossa. A Inês a assistir a um jogo de futebol no estádio, com um cachecol a tapar-lhe os insultos que teimavam em sair-lhe da boca. A Inês. Parece-me ouvir a voz dela, lá em baixo, tal o estado de adormecimento do meu cérebro. Nesse instante a porta do prédio bate e os sapatos dela começam a fazer barulho nas escadas.

Desperto e as tremuras regressam às minhas mãos. Já volta? Tão cedo? Afasto os lençóis, enfio os chinelos nos pés e pego no saco do lixo, deixado à porta para ocasiões como esta. Abro a porta no momento certo. Vejo-a, muito pálida e nervosa, de telemóvel colado à orelha. Será que se sentiu mal no trabalho? Pior: será que alguém lhe fez mal?

- Espera aí, que eu já te ligo. – diz, quando me vê. Estou plantado à porta num estado vergonhoso, provavelmente despenteado e de saco negro na mão. Desliga o telefone e lança-me um olhar vazio.
- Já de volta? Está tudo bem?
- Oh olá, António, desculpa se fiz muito barulho. Está tudo bem, obrigada. – baixa automaticamente o olhar.
- É que não parece…
- Tens razão. Não me estava a sentir muito bem no trabalho e vim para casa. Aconteceu uma coisa e…
- Que coisa?
- Entraram-me no computador, António. Aquilo começou a tocar um vídeo com fotografias minhas, fotografias de momentos em que eu estava sozinha. Não são todas recentes, algumas têm meses. Com as minhas músicas favoritas de fundo. Como se estivesse a ser seguida a cada momento. Estou assustada e só espero que isto seja tudo uma brincadeira. Rico dia de aniversário.

Paralisei. Tento explicar-me, quero tranquiliza-la, dizer-lhe que a amo e que não tem por que ter medo. Põe a chave à porta e olha-me antes de entrar.
- Até logo, António. Um dia destes passa por cá para tomar um chá ou assim. Afinal somos vizinhos há anos e mal falamos. 

 

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