Nunca mais
por RN
José viu o Sol pela primeira vez aos nove anos, num livro de ciências naturais, na aula em que a professora ensinou à turma o que eram seres extintos. O círculo redondo e alaranjado ocupava meia página e o rapaz quase podia sentir-lhe o calor.
Enquanto a turma discutia animadamente dinossauros e mamutes, José não conseguia deixar de pensar naquela estrela gigante e no que lhe teria acontecido. Lá fora chovia. Chovia sempre, numa cortina miudinha que teimava em preencher os dias e as noites. As gotas caiam porque haviam sido feitas para tal: para pingar sem nunca se cansarem.
Como é que uma coisa tão grande pode desaparecer assim? Como eram os dias quando havia Sol? O que se fazia aos guarda-chuvas e às gabardinas quando não havia água a cair? José tinha muitas perguntas, mas a vergonha impedia-o levantar o dedo como faziam os colegas, por isso guardou-as todas no bolso, bem embrulhadinhas, junto de uma Gorila de morango.
Regressou a casa com a cabeça às voltas. As induções e deduções levaram-no à bem construída conclusão de que não havia alguém que pudesse acalmar-lhe os neurónios hiperactivos. Ninguém era assim tão velho; nem mesmo a Avó Aurora havia alguma vez feito jus ao nome.
Entrou no prédio e deixou o guarda-chuva no sítio do costume, junto às caixas do correio. As pessoas tinham-se habituado a deixá-los em locais próprios, para não levarem as gotas de chuva para dentro de casa. Já ocupavam demasiado espaço lá fora, não valia a pena trazer humidade para o conforto do lar.
- O menino hoje veio mais tarde – o Senhor Gaspar, como qualquer bom porteiro, sabia de cor os ritmos e horários de cada morador do prédio.
- Perdi o autocarro e tive de vir a pé.
- Perdeu o autocarro? Como é que se perde uma coisa tão grande? – o Senhor Gaspar, como qualquer bom porteiro, tinha uma piada para cada ocasião, muito embora quase sempre lhe falhasse a graça.
- É mesmo isso que me atormenta.
- Credo, menino José, tem lá idade para andar atormentado? Ou melhor: tem lá idade para usar palavras tão feias?
José tirou a Gorila do bolso e descascou-a sem sequer se preocupar com o papelinho que trazia dentro. Depois do esforço inicial a que se sujeita um mascador daquelas pastilhas, o rapaz ruminou os pensamentos. Fez um balão e rebentou-o de seguida.
- Sabes, Gaspar, hoje vi o Sol. Mas não lhe pude tocar mesmo porque ele era um desenho num livro. E fiquei triste, sabes? Fiquei triste porque ninguém vai poder mexer-lhe. Nem prová-lo, nem cheirá-lo. Nunca mais.
- O menino não sabe. Não diga isso. Nunca mais é muito tempo. Nunca mais é como jogar ao sério com uma pedra.
Dito isto, o Senhor Gaspar levantou-se da cadeira – com alguma dificuldade, há que admiti-lo – aproximou-se do rapaz e colocou toda a alma num abraço. E José sentiu o Sol pela primeira vez aos nove anos, no colo de quem não tem respostas, mas quer acalmar a angústia irrequieta de quem ainda tem muito para crescer.
Enquanto a turma discutia animadamente dinossauros e mamutes, José não conseguia deixar de pensar naquela estrela gigante e no que lhe teria acontecido. Lá fora chovia. Chovia sempre, numa cortina miudinha que teimava em preencher os dias e as noites. As gotas caiam porque haviam sido feitas para tal: para pingar sem nunca se cansarem.
Como é que uma coisa tão grande pode desaparecer assim? Como eram os dias quando havia Sol? O que se fazia aos guarda-chuvas e às gabardinas quando não havia água a cair? José tinha muitas perguntas, mas a vergonha impedia-o levantar o dedo como faziam os colegas, por isso guardou-as todas no bolso, bem embrulhadinhas, junto de uma Gorila de morango.
Regressou a casa com a cabeça às voltas. As induções e deduções levaram-no à bem construída conclusão de que não havia alguém que pudesse acalmar-lhe os neurónios hiperactivos. Ninguém era assim tão velho; nem mesmo a Avó Aurora havia alguma vez feito jus ao nome.
Entrou no prédio e deixou o guarda-chuva no sítio do costume, junto às caixas do correio. As pessoas tinham-se habituado a deixá-los em locais próprios, para não levarem as gotas de chuva para dentro de casa. Já ocupavam demasiado espaço lá fora, não valia a pena trazer humidade para o conforto do lar.
- O menino hoje veio mais tarde – o Senhor Gaspar, como qualquer bom porteiro, sabia de cor os ritmos e horários de cada morador do prédio.
- Perdi o autocarro e tive de vir a pé.
- Perdeu o autocarro? Como é que se perde uma coisa tão grande? – o Senhor Gaspar, como qualquer bom porteiro, tinha uma piada para cada ocasião, muito embora quase sempre lhe falhasse a graça.
- É mesmo isso que me atormenta.
- Credo, menino José, tem lá idade para andar atormentado? Ou melhor: tem lá idade para usar palavras tão feias?
José tirou a Gorila do bolso e descascou-a sem sequer se preocupar com o papelinho que trazia dentro. Depois do esforço inicial a que se sujeita um mascador daquelas pastilhas, o rapaz ruminou os pensamentos. Fez um balão e rebentou-o de seguida.
- Sabes, Gaspar, hoje vi o Sol. Mas não lhe pude tocar mesmo porque ele era um desenho num livro. E fiquei triste, sabes? Fiquei triste porque ninguém vai poder mexer-lhe. Nem prová-lo, nem cheirá-lo. Nunca mais.
- O menino não sabe. Não diga isso. Nunca mais é muito tempo. Nunca mais é como jogar ao sério com uma pedra.
Dito isto, o Senhor Gaspar levantou-se da cadeira – com alguma dificuldade, há que admiti-lo – aproximou-se do rapaz e colocou toda a alma num abraço. E José sentiu o Sol pela primeira vez aos nove anos, no colo de quem não tem respostas, mas quer acalmar a angústia irrequieta de quem ainda tem muito para crescer.
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