segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Livros de Ontem Newsletter - Quem Conta um Conto "Hipólito e Ana" por Gurb


Hipólito e Ana

por Gurb


Ao fim de quase cinquenta anos, Hipólito ia finalmente voltar a ver. A cura para a cegueira, pela qual esperara cada minuto da sua vida, estava próxima. Faltavam apenas as pequenas burocracias hospitalares. Depois, era só entrar numa sala de operações e em menos de duas horas estava corrigido o problema de uma vida.

Estava ansioso por voltar a ver, o toque já não lhe bastava. Acima de tudo, queria rever a mulher, Ana, com quem se casara pouco depois de ter cegado. Lembrava-se muito bem de como a encontrara e repetia frequentemente o episódio na sua cabeça.

Eles já se conheciam, Hipólito costumava ir a festas na casa de um amigo onde Ana também parava de vez em quando. Logo lhe chamou a atenção a primeira vez que a viu: um ar tímido onde por vezes surgiam lampejos de diva, um cabelo moreno como ele achava que nunca tinha visto, uma cara que parecia talhada directamente pela mão de um deus qualquer. Ele tinha ideia que ela também reparara nele, mas nunca aconteceu realmente nada entre ambos.

Depois, com vinte e poucos anos, Hipólito cegou, deprimiu e entrou em pânico. Um dia, nas primeiras vezes que saiu à rua, ainda desabituado da bengala que lhe tinham dado, deixou-a cair e quase desatou a chorar. De repente ouviu a voz de Ana e confirmou pouco depois que era ela. Já não a via, mas – pela primeira vez! – tocou-lhe na cara, percebeu-lhe as feições e gostou tanto como se a estivesse a ver. Ela, como ele suspeitava, também tinha um fraquinho por Hipólito e foi uma feliz conjugação de vontades a que os juntou naquela manhã.

Casaram. Tiveram filhos. Tiveram netos. Hipólito nada via, mas absorvia tudo. Gostava de Ana tal como a tocava e mantinha presente na mente a rapariga que conhecera, fresca, um pouco selvagem mas sobretudo tímida. Agora, o que mais queria era ser de novo abençoado por essa visão divinal. Pediu mesmo ao médico que, mal acabasse a operação, Ana pudesse entrar na sala para que fosse a cara dela a primeira imagem que ele via.

E tudo assim foi: Hipólito curou-se da cegueira, mas os olhos mantiveram-se fechados até que Ana estivesse à sua frente. Depois, ela disse-lhe que já os podia abrir e ele finalmente viu-a.

Santo Deus! Ao abrir os olhos, foi como se visse a pequena Ana outra vez, tal como a deixara há quase cinquenta anos. Envelhecera, claro, as rugas eram bem visíveis, os cabelos eram já brancos, mas continuava com a mesma beleza, era a mesma mulher. Ele próprio, Hipólito, devia estar num rico estado…
Ficou a olhar para ela muito tempo, a passar-lhe a mão por cada canto da cara. E, pouco depois, sentia que já conhecia todas as rugas, todas as feições. Todas? Não. Havia uma ruga que não era ruga, era um sulco profundo, algo que não fora o tempo a fazer.

— O que é isto?, perguntou.

— Nada, nada, não te preocupes.

Mas ele quis saber. E Ana começou a chorar.

— Há uns anos, quando estivemos de férias no norte, um homem abordou-me uma noite. Tu estavas em casa, eu tinha ido comprar tabaco. Ele agarrou-me e queria roubar-me, mas eu não deixei. Então…então ele fez-me este golpe com uma faca.

— Porque é que eu nunca soube disto?

Ela ficou calada.

Horrorizado, Hipólito olhou para Ana e considerou a cicatriz. Ficava junto à orelha direita e mal se dava por ela, era preciso fazer um esforço para não a confundir com uma ruga. Mas Hipólito agora sabia e, sabendo, não conseguia abstrair-se dela. Pareceu-lhe mesmo que a cicatriz tomava proporções monstruosas, que a tornava feia. Então sentiu repulsa dela, quis afastá-la. Não só de repente a sua percepção sobre a mulher da sua vida mudara, como ela ainda dera a entender que ele era um inválido. Sentia-se sufocado, sentiu o pânico que só se lembrava de ter sentido quando cegou – e desejou voltar a não ver.

Ana disse:

— Mas tudo isto são águas passadas. Pensa só: esta noite vais poder dormir ao meu lado e ver a minha cara… vamos poder olhar-nos nos olhos… enquanto nos amamos…

E Hipólito sentiu que ia vomitar.

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