terça-feira, 15 de setembro de 2015

Casa de Família por R. Figueiredo Livros de Ontem

Casa de Família

por R. Figueiredo


Aquela casa traz sempre más memórias. Por muitos males que aconteçam na sua vida, as memórias daquela casa são sempre piores. Estar agora em frente ao portão do jardim, a olhar para aquela vivenda que já era mais da natureza do que dele...

Fechou os olhos e respirou fundo. E lembrou-se. Do pior dos piores... O homem que vivia no sótão.

No início era uma pessoa agradável. Jovem, nos seus vinte e muitos anos, sempre vestido com calças e camisa passadas impecavelmente, os sapatos de pele engraxados e reluzentes. Mas a melhor parte era o sorriso. Era sempre mais rasgado no lado direito da cara, mas discreto o suficiente para não ser espalhafatoso.

Ao atravessar o jardim, tirou a chave do bolso. Um movimento que havia feito tantas vezes no passado mas que agora lhe parecia estranho. Experimentou a fechadura, com alguma esperança que a ferrugem impedisse o mecanismo de rodar e, então, ele não teria que entrar. Talvez o destino tome essa decisão por ele. Mas hoje não era o seu dia de sorte. Quase como uma respeitosa vénia, a porta abriu-se, libertando o ar pesado e abafado que guardou durante tantos anos.

O rapaz levou a mão à boca, não que o cheiro o agredisse, mas lembrava-lhe do cheiro que o sótão teve. Quando o homem que lá vivia começou a desleixar-se. Primeiro foi um dia que o colarinho da camisa não estava bem direito. Ou as calças que não tinham ficado bem passadas. Foi mais ou menos nessa altura que o rapaz começou a ter problemas com os pais. Agora, ao olhar para trás, tinham sido cenas típicas da adolescência. As noites tardias, as notas da escola que iam sofrendo, e depois quando descobriram o maço de tabaco...

O rapaz vagueou pela casa. Meio em jeito de nostalgia, mas acima de tudo para evitar ter que subir. No andar de cima estavam os quartos. Dele, dos pais, e um vago para os hóspedes. E acima disso, o sótão. Aquele maldito sótão.

O dia em que decidiu sair de casa não foi nada de especial. Foi um acumular de coisas. Começou a guardar dinheiro e falou com amigos que pudessem dar-lhe guarida, pelo menos por uns dias.

Durante essas semanas, em que viveu naquela casa a pensar na vida fora dela, o homem do sótão envelheceu décadas. Na altura, o rapaz não percebeu o que tinha acontecido. As camisas desbotoaram, as calças ficaram gastas e rafadas. O cabelo cresceu selvagemente e a barba amareleceu. O rapaz nem sabia que o homem fumava. Mas também não percebia porque é que mais ninguém naquela casa parecia interagir com o homem.

Enquanto subia para o segundo andar, pensava no dia em que os pais descobriram o que ele planeava e o expulsaram de casa. Os gritos. As acusações. O bater do portão. O homem a olhá-lo da janela do sótão.

Finalmente chegou às escadas para o sótão. A porta (ou o que restava dela) deixava espreitar os degraus de madeira que aguardavam do outro lado. As dobradiças lançaram um protesto agudo, mas não deixaram de fazer o seu trabalho.

Os degraus, esses não quiseram quebrar a solenidade do momento. E no topo, no final da escadaria, lá estava o homem. Como o rapaz se lembrava dele, excepto os olhos fechados e a pele pálida.

Só muitos anos depois de ter saído em raiva daquela casa, depois de muitas noites ao relento e más companhias e drogas tudo o resto, só aí ele percebeu quem era o homem e o que lhe tinha acontecido.

Afinal de contas, nada mata o futuro como desistir dele.


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