quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Ele por CL | Quem Conta um Conto


Ele

por CL


Vi-te no outro dia, de relance pela janela do autocarro, e hoje voltei a ver-te. Caminhavas serenamente sob a luz do sol já difuso e, nos poucos segundos em que consegui observar-te, notei que eras alto, tinhas uns cabelos rebeldes que se encaracolavam nas pontas do gorro que trazias e tinhas uma barba ruiva, desleixada. Não consegui ver a cor dos teus olhos por detrás dos óculos de sol, mas fiquei demasiado tempo a pensar de que cor seriam.

- Olá amor, como estás? – perguntou o Zé assim que saí do autocarro, ao mesmo tempo que me envolvia num abraço e me dava um beijo nos lábios.

- Está tudo bem e contigo?

Conheci o Zé há cinco anos. Foi amor à primeira vista, quase como nos filmes. O Zé é um rapaz fantástico, com todas as qualidades que sempre esbocei para o homem com quem iria ficar: é um aventureiro, nunca me deixa sentir que somos um casal chato, tem sempre uma graça para dizer que me faz levantar os lábios mesmo nos piores dias e ama-me, e eu amo-o. E, à parte disso, é muito bem-parecido e tem um excelente desempenho na cama.

Qualquer descrição do Zé seria redutora e pareceria leviana e egoísta, ninguém o conhece como eu conheço, ninguém o ama como eu amo e, ou fosse eu poetisa e conseguiria descrever o seu encanto em breves versos, ou não existem palavras certas que possam contar a nossa história, o nosso amor e o Zé.

E é estranho que agora, ao olhar pela janela embaciada do quarto do Zé, por entre os reflexos desfocados das luzes nocturnas, não consiga parar de imaginar de que cor serão os teus olhos.
- Até logo amor, hoje sou eu que trago o jantar – despediu-se o Zé pela manhã enquanto me pousava um beijo na testa e se apressava a sair de casa.

Levantei-me pouco depois, tomei um duche demorado – tinha tempo – arranjei-me e sai de casa. Era sábado de manhã, o Zé tinha qualquer coisa combinada com uns amigos e eu estava por minha conta até à hora de jantar.

"A cor dos teus olhos", era tudo aquilo em que não conseguia deixar de pensar e, enquanto olhava para o rio e sentia a calidez do sol derrotar o frio do inverno, senti uma mão pousar sobre a minha. Por momentos deixei de sentir o sol e todo o frio do inverno se abateu sobre mim. Conseguia ver bem os teus olhos agora, mas continuava sem saber dizer a cor, eram escuros, em contraste com a tua barba quase vermelha, mas tinham em si todas as cores, ou nenhuma. Fizeste deslizar a tua mão desde a minha testa ao meu pescoço. E naquele momento um arrepio tornou o frio ainda mais intenso. Olhámo-nos brevemente e no espelho dos teus olhos eu vi todas paixões da minha vida, aqueles com quem tinha trocado votos de amor de alguma forma – e vi o Zé, e vi-me a mim e por fim, vi-te a ti. E na hipocrisia espelhada do sentimento mais nobre do mundo beijei-te e a tua língua fez retomar todo o calor ao meu corpo.

Nessa noite não fui jantar. Nessa noite já não olhei para o Zé, adormecido sobre os lençóis brancos. Para um amor começar é preciso que outro tenha morrido. Nessa noite só te vi a ti, nu, a minha mão emaranhada no teu cabelo rebelde, à espera que acordasses e abrisses esses teus olhos tempestuosos de cor indeterminável e me relembrasses que não há nada de cândido no amor.

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