Jogo de cartas no jardim
por CL
- É a tua vez.
- Toma lá uma manilha, desta vez parece-me que ganhas.
- Se fosse só desta vez - escarneceu.
- Estas cartas estão a ficar gastas, olha para esta dama, começa a ficar comida na ponta. Hei-de ver se dou um jeitinho a este baralho.
- Joga mas é e deixa-te de coisas, deixa lá os teus trabalhos de restauração para as obras de arte, este baralho serve bem!
- Por agora... – disse com os lábios, inaudivelmente – Toma, é ponto para ti outra vez.
- Vou ganhar isto, está visto, é sempre tão fácil ganhar contigo – disse enquanto soltava uma gargalhada amigável
- Sabes bem que é só porque eu deixo, havias de ficar a resmungar o resto do dia se não ganhasses!
- Ora ora, conheces-me há tantos anos e é isso que achas de mim, que a rabugice me afronta só porque perco uma cartada.
- A rabugice afronta-te quando perdes qualquer coisa!
- Ora isso é porque gosto de conservar o que tenho, gosto de te conservar a ti!
- Deixa-te de lisonjas que a mim não me convences. Se gostasses de conservar o que tens passavas-me esse baralho e deixavas-me tratar-lhe das feridas, ia ficar melhor que agora, ias ver!
- Mas que raio, outra vez a conversa do baralho.
- Pois claro, e há-de continuar, ainda tenho esperança que me deixes dar-lhe um jeitinho... Senão olha, qualquer dia fica mesmo sem arranjo!
- Veremos. Olha lá, e agora sem baralhos à mistura, já viste o dia lindo que está hoje? O jardim até parece mais bonito, estas cadeiras até parecem mais confortáveis vê lá!
- Então agora vamos pôr-nos a falar do tempo, é isso? Como aqueles casais que já esgotaram todos os temas de conversa? A seguir vais perguntar-me o que é o almoço?
- Hoje o que está difícil é não despertar a tua rabugice, parece que não sou só eu a ter mau perder. E o que é o almoço? – escarneceu.
- Eu tenho mau perder, sabes disso, especialmente esse baralho aí; já com o jogo, posso eu bem. O almoço, se quiseres, vais tu fazê-lo.
- Que chatice! Não falemos então nem do tempo nem das cartas nem de comeres. Olha lá, lembras-te de quando viemos aqui pela primeira vez? Já foi há uns anos valentes!
- Então não lembro... parecia tudo diferente nessa altura. Lembro-me de brincar e dizer que quando chegássemos a velhos havíamos de acabar a jogar aqui às cartas, como já faziam os velhos nessa altura no jardim.
- É verdade, até jogámos uma cartada rápida em jeito de confirmação do futuro... e não é que acabámos mesmo aqui? Somos a melhor previsão que fizemos.
- Fossemos. Tivesses deixado que o baralho não se desgastasse incontornavelmente. Agora sento-me aqui, depois de tantos anos, no mesmo banco de jardim… o verniz foi retocado novamente há pouco tempo...é sempre preciso dar um restaurozinho de vez em quando, se não qualquer dia já ninguém aqui vai ver isto como um assento. "Eu e os meus restauros", apontavas tu tantas vezes, mais vezes do que devias.
- Toma.
- É igual...mas parece novo, onde foste desencantar este baralho?
- Às tuas expectativas. Tomara tivéssemos podido envelhecer juntos, ter falado do tempo quando o assunto escasseasse e eu ter feito o almoço, como quase ordenaste.
- Podes ficar com o baralho, ele já não nos pertence. E parece que vai chover... tenho de ir andando, ainda tenho de ir fazer o jantar. Adeus.
E mais uma vez, como era costume todas as primeiras terças feiras de cada mês, a D. Joana lá se levantava, auxiliada pela sua bengala cansada e seguia pela calçada tosca. Não sei há quanto tempo a D. Joana trava este diálogo a solo, mas suponho que há muito mais que os dois anos que por aqui pouso frequentemente. Ela já notou que sou presença assídua, quando passa por mim diz sempre "Tem graça não tem? Os jardins guardam mil histórias que só os velhos vêm e os novos não sabem". "Suponho que sim", digo eu sempre.
- Toma lá uma manilha, desta vez parece-me que ganhas.
- Se fosse só desta vez - escarneceu.
- Estas cartas estão a ficar gastas, olha para esta dama, começa a ficar comida na ponta. Hei-de ver se dou um jeitinho a este baralho.
- Joga mas é e deixa-te de coisas, deixa lá os teus trabalhos de restauração para as obras de arte, este baralho serve bem!
- Por agora... – disse com os lábios, inaudivelmente – Toma, é ponto para ti outra vez.
- Vou ganhar isto, está visto, é sempre tão fácil ganhar contigo – disse enquanto soltava uma gargalhada amigável
- Sabes bem que é só porque eu deixo, havias de ficar a resmungar o resto do dia se não ganhasses!
- Ora ora, conheces-me há tantos anos e é isso que achas de mim, que a rabugice me afronta só porque perco uma cartada.
- A rabugice afronta-te quando perdes qualquer coisa!
- Ora isso é porque gosto de conservar o que tenho, gosto de te conservar a ti!
- Deixa-te de lisonjas que a mim não me convences. Se gostasses de conservar o que tens passavas-me esse baralho e deixavas-me tratar-lhe das feridas, ia ficar melhor que agora, ias ver!
- Mas que raio, outra vez a conversa do baralho.
- Pois claro, e há-de continuar, ainda tenho esperança que me deixes dar-lhe um jeitinho... Senão olha, qualquer dia fica mesmo sem arranjo!
- Veremos. Olha lá, e agora sem baralhos à mistura, já viste o dia lindo que está hoje? O jardim até parece mais bonito, estas cadeiras até parecem mais confortáveis vê lá!
- Então agora vamos pôr-nos a falar do tempo, é isso? Como aqueles casais que já esgotaram todos os temas de conversa? A seguir vais perguntar-me o que é o almoço?
- Hoje o que está difícil é não despertar a tua rabugice, parece que não sou só eu a ter mau perder. E o que é o almoço? – escarneceu.
- Eu tenho mau perder, sabes disso, especialmente esse baralho aí; já com o jogo, posso eu bem. O almoço, se quiseres, vais tu fazê-lo.
- Que chatice! Não falemos então nem do tempo nem das cartas nem de comeres. Olha lá, lembras-te de quando viemos aqui pela primeira vez? Já foi há uns anos valentes!
- Então não lembro... parecia tudo diferente nessa altura. Lembro-me de brincar e dizer que quando chegássemos a velhos havíamos de acabar a jogar aqui às cartas, como já faziam os velhos nessa altura no jardim.
- É verdade, até jogámos uma cartada rápida em jeito de confirmação do futuro... e não é que acabámos mesmo aqui? Somos a melhor previsão que fizemos.
- Fossemos. Tivesses deixado que o baralho não se desgastasse incontornavelmente. Agora sento-me aqui, depois de tantos anos, no mesmo banco de jardim… o verniz foi retocado novamente há pouco tempo...é sempre preciso dar um restaurozinho de vez em quando, se não qualquer dia já ninguém aqui vai ver isto como um assento. "Eu e os meus restauros", apontavas tu tantas vezes, mais vezes do que devias.
- Toma.
- É igual...mas parece novo, onde foste desencantar este baralho?
- Às tuas expectativas. Tomara tivéssemos podido envelhecer juntos, ter falado do tempo quando o assunto escasseasse e eu ter feito o almoço, como quase ordenaste.
- Podes ficar com o baralho, ele já não nos pertence. E parece que vai chover... tenho de ir andando, ainda tenho de ir fazer o jantar. Adeus.
E mais uma vez, como era costume todas as primeiras terças feiras de cada mês, a D. Joana lá se levantava, auxiliada pela sua bengala cansada e seguia pela calçada tosca. Não sei há quanto tempo a D. Joana trava este diálogo a solo, mas suponho que há muito mais que os dois anos que por aqui pouso frequentemente. Ela já notou que sou presença assídua, quando passa por mim diz sempre "Tem graça não tem? Os jardins guardam mil histórias que só os velhos vêm e os novos não sabem". "Suponho que sim", digo eu sempre.
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